Sunday, January 07, 2007

DIA 13 - PERITO MORENO (ARG) - EL CALAFATE (ARG)


O dia em que conheci o rípio intimamente...

Saí do camping do Raul as 9h da manhã. Ele é incrivelmente parecido com o Pernambuco, o figura que toca a academia de tenis do Daniel Contet, onde treina a Teliana, por sinal, filha do Pernambuco. Tirei foto pra provar!

Aí, tomei a decisão mais importante da viagem até aqui. Para chegar até El Calafate, haviam duas opções: pegar a famosa Ruta 40, que desce pelo semi-deserto patagônico, o que implicava um tiro de mais de 600 km, dos quais cerca de 500 no rípio, ou atravessar a Argentina até o Atlantico e pega a Ruta 3, que me daria apenas uns 150 km de rípio, mas um trajeto total de cerca de 1000 km. O problema na Ruta 40, além do rípio, era a questão de combustível, porque pelos mapas, depois de Perito Moreno só teria combustível em Tres Rios, uns 500 km abaixo. No caminho, o Josef (o Austríaco rabudo que ganha a vida andando de moto) haviam dois pontos no meio do caminho que teriam combustível com certeza. Pra garantir, fui pros carabineros confirmar e a informação do Josef estava certa. Portanto, decisão tomada: iria pela Ruta 40 e enfrentaria os 500 km de rípio. Até porque, a esta altura, estava me sentindo o rei do rípio...

Entrei "pica grossa" no rípio da Ruta 40. O rípio da Argentina é diferente do rípio do Chile (não disse que tava me sentindo o rei do rípio???? hehehehehe). O rípio chileno é feito de pedras maiores, tipo pedras de rio, mais redondas. O rípio argentino é feito de pedras menores, tipo pedra brita que usamos por aí em construções. Isso gera para a moto uma diferença fundamental, para o bem e para o mal. Para o bem, ocorre que em estradas bem movimentadas, o rípio se espalha mais, deixando o contato com o solo firme que está embaixo mais fácil, o que melhora substancialmente a pilotagem da moto. Para o mal, em função do mesmo fator, que em estradas menos movimentadas, o rípio não se espalha de todo, e aí, formam-se "trilhos" por onde passam os carros, onde as pedras quase desaparecem deixando terreno firme, mas com "montanhas" de rípio em volta destes trilhos. Isso, na prática, traz o mesmo benefício para a moto, só que com uma diferença fundamental: o espaço que se tem para andar com a moto é de não mais que 50 cm, pois se o piloto sai do trilho e pega o rípio acumulado em volta, a roda dianteira da moto perde contato com o solo e dança livremente, ao Deus dará, deixando a moto completamente desgovernada. E o mais interessante: a única forma de recuperar o controle da moto nessas condições, ao contrário do que manda o instinto, não é frear e reduzir a velocidade, mas sim andar sempre em giro alto para que, na eventualidade de escorregar no rípio solto, acelerar forte para recuperar o controle da moto pela tração da roda traseira, "cavando" do rípio.

O início da Ruta 40 foi sem problemas. Meio que dominei a técnica do sangue frio e já tava até me divertindo com as eventuais escapadas, acelerando forte e saindo dos pequenos sustos, chegando a andar a cerca de 100 km/h nessas condições. Até o momento em que, num trecho bastante largo de estrada, a moto escorregou e não havia mais "trilho" pra tracionar. A moto ficou desgovernada, a roda dianteiro tentando ir pra todo lado, e eu tentando manter o sangue frio e acelerar! Isos durou uns 5 segundos, acho que não mais que isso. Mas é impressionante a velocidade com que o cérebro funciona num momento desses. Nesses 5 segundos passaram pela minha cabeça coisas como :tenho que achar uma rota de fuga", "não tem rota de fuga, tenho que escolher o melhor jeito de cair", "se cair, vai dar merda, to muito rápido", "vou ter que interromper a viagem no meio, fudeu", "se me machucar, o que vou fazer pra sair do meio desse deserto?", "será que a moto vai estragar muito?", "quanto tempo será que vou ter que esperar até alguém passar por aqui?". Isso tudo e muito mais, naqueles não mais que 5 segundos...

Mas consegui sair dessa! Não é que funciona? Depois de surfar o rípio daqui pra lá e de lá pra cá, a moto tracionou e consegui sobreviver!

Hora de rever meus conceitos! O Dellamea disse uma coisa legal num comentário que fez no blog: o segredo do viajante de aventura é ler os sinais que a estrada dá. E me parece que sinal mais claro que esse seria impossível. Ou seja, dali pra frente jamais, nem que a estrada estivesse um tapete, passaria dos 80 km/h. Respeito ao rípio!

E assim foi. O cenário da Ruta 40 realmente é fascinante. Formado por um semi-deserto, pequenos canions, e bichos a dar com o pé na beira da estrada (e entrando nela em alguns momentos). Tatus, guanacos (uma espécie de lhama do deserto patagônico), emas... todos ali, no habitat natural, praticamente um sáfari patagônico. Só que esse fascínio acaba depois da primeira hora sob o sol escaldante e a poeira da estrada, porque nada muda. Tem-se a sensação de estar cruzando uma paisagem daquelas de filme de velho oeste, só que esse cenário não acaba nunca.

Parei pra abastecer em Bajo Caracoles, um pueblo onde vivem menos de 80 pessoas. Encontrei um holandês que mora do Rio há tempos estava fazendo viagem parecida com a minha a bordo de um Land Rover defender.

Seguie viagem, levando na bagagem 4 litros de gasolina para a eventualidade do combustível não ser suficiente para os 370 km que separavam Bajo Caracoles do próximo ponto de abastecimento em Tres Rios.

80 km antes de Tres Rios, exatamente com 6125 km rodados desde a saída de Curitiba, o rípio se encantou por mim e quis me conhecer mais de perto...

A merda toda começou a ser construída na noite anterior, quando decidi dormir em Perito Moreno depois de um dia extenuante e acabei tendo uma noite mal dormida na barraca + saco de dormir. O cansaço acumulado, somado ao tédio e consequente tendência à desconcentração ofereceram ao rípio o cenário perfeito para nosso encontro...

A pilotagem nas condições que descrevi é extremamente desgastante. Não se pode tirar os olhos da estrada por um segundo, pois qualquer descuido pode ser suficiente para sair daqueles 50 cm de trilho onde a moto roda com segurança. Num trecho da estrada dos mais tranquilos, com trilhos um pouco mais largos e em que eu trafegava em velocidade moderada (uns 60 km/h), passava pela minha cabeça justamente o pensamento de que em mais 80 km eu estaria em Tres Rios, que o pior já havia passado, que agora estava tudo tranquilo, quando...

Não deu tempo nem de pensar naquela coisarada toda do primeiro susto. A roda dianteira simplesmente afundou do rípio e no momento seguinte, eu estava levantando do meio das pedras para avaliar os danos à moto...

CHÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOOOOOOOOOOOO!!!!!

Agradeço à Spidi (jaqueta), Alpine Stars (luvas e botas) e X-Vince (calça) por ter saído quase que absolutamente ileso do episódio. Apenas uma pancada no joelho esquerdo, devidamente protegido pelas proteções da calça, mas que “queimou” ralando no forro interior.

Quanto à moto, a primeira avaliação mostrou um pisca quebrado, o windshield destruído e o suporte do manete esquerdo, onde se sustenta o espelho e a embreagem, quebrado. Para minha surpresa, os bauletos da givi e respectivos suporte, que eram minha grande preocupação no caso de uma queda, sobreviveram ilesos.

Ao que tudo indica, a moto afundou a roda dianteira no rípio, mergulhou de bico pela esquerda (o que explica o windshield e o suporte da embreagem quebrados) e literalmente rodou no próprio eixo (quase que capotou), o que explica o ralado no protetor de motor da lado direito e o bauleto direito e traseiro ralados.

Levantei a moto (o curso da Harley de pilotagem defensiva fez a diferença no esquema de fazer alavanca com a perna pra levantar a bicha e os seus quase 300 kg com os bauletos), e avaliei os estragos. Aparentemente, nada de realmente sério. Nenhum vazamento, nada torto na estrutura, tanque praticamente ileso. Tentei ligar... nada!

Que raios! Agora fudeu! "O jeito é ficar aqui e esperar ajuda", pensei. Mas o mais desesperador neste momento era a sensação de ficar pelo caminho e não completar o projeto. Tudo que me passava pela cabeça era quais seriam as alternativas para consertar a moto e seguir em frente, tudo que eu não queria era ter que desistir. Tentei de novo e nada... Aí lembrei do pulo do gato! A V-Strom não liga se a embreagem não estiver acionada. E o suporte da embreagem estava quebrado! Dito e feito! Mexi no suporte, levantei, puxei, apertei, até que pegou!

Nesse momento, a sensação de alívio foi incomensurável. Havia ainda a preocupação com a moto, em saber se o comportamento dela realmente estaria inalterado. Mas isso era o de menos! Nem que fosse de lado, eu chegaria a algum lugar onde pudesse consertá-la. É evidente que uma ocorrência como essa havia sido prevista e estava preparado para ela (planejamento é tudo, mesmo para o pior...). E ela ocorreu justamente no ponto mais deserto da viagem, mais sem estrutura, no meio de lugar nenhum com o vilarejo mais próximo (não to nem falando de cidade...) a cerca de 100 km. Quando engressei na Ruta 40, o primeiro carro que cruzei na estrada apareceu depois de 75 km rodados! Se a moto não funcionasse, eu teria que aguardar ajuda. Se ajuda não passasse antes de escurecer, tinha barraca, saco de dormir, barras de cereal pra um ano, e água, o que me permitiria passar a noite no local caso fosse necessário. Mas quando a possibilidade se torna realidade, não é fácil.

Mas felizmente, nada de errado aconteceu. O comportamento da heróica DL1000 permanecia inalterado, reto, confiável. E quase duas horas depois, finalmente, cheguei a 3 rios.
Saquei o bom e velho silver tape, que fixou o manete e eliminou o problema da embreagem. Abasteci, e segui viagem até El Calafate, uma cidade encantadora, que ao que tudo indica, experimentou um desenvolvimento vertiginoso ao longo dos últimos poucos anos, já que todos os guias que li a descrevem como uma cidade com duas ruas asfaltadas e o que encontrei foi uma cidade encantadora, com ruas movimentadas e cheias de gente, e algumas dezenas de ruas perfeitamente asfaltadas.

Achei hotel, saí pra comer uma parrila no esquema espeto corrido e experimentar o famoso cordeiro patagônico, e depois disso e do dia mais terrível (mas provavelmente, o que mais me ensinou...) da viagem até aqui, era hora de ir pra cama...

PS.: Só me arrependo de não ter tido a presença de espírito de fotografar a moto caída no meio do rípio. Seria uma boa recordação... ;-)


ROTEIRO: Perito Moreno - Bajo Caracoles - Tres Rios - El Calafate
KM: 638,78 KM percorridos hoje, dos quais mais de 500 no rípio da Ruta 40 - 6458,71 KM rodados no total

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